terça-feira, 29 de dezembro de 2009

GÉNESIS

I
Continuamente contraria em si a solidez daquilo que é,
Forjando a solidão de ser um si que mereça ser-se.

Violento a natureza estanque do que sou, do que me é, de isto:
Este quotidiano de gestos, como uma pele feita de seu vagaroso passado;
Estas palavras-toca, adiposidades que se ventosam às coisas, mais do que as nomeiam;
As costumadas sinapses, rumos em que o hábito se torna hábito,
E eu me torno de mim próprio hábito,
Como um rio em que a água se fixasse para sempre.

Senta-se face a face com deus, ou, se não, perante um espelho.

Chama. Borboletas que invocam tempestades,
Senhoras com rugas e coroas de pérolas,
Que hoje depositam as nádegas em cadeiras que as suportem,
Diante de um computador portátil,
Vislumbrando, como outrora, destinos nos interstícios irracionais dos astros,
Professores de óculos,
Encabidando casacos verdes, de bombazina e cotoveleiras,
Certos lémures frágeis, trepando franzinamente por entre circunvalações nodosas.

Chama-os, mas ninguém o chama.

Nada, nada, nada me revoluciona o mundo nunca:
Nada disto o eleva.

Uma boneca fita-me,
Com seus olhos similarmente humanos em que, por um instante,
Suspeito um instante de astúcia.

Eis o espelho. Eis deus.
Clamando só por que o barbeiem.

Não há mais que isto.

II

Pelo menos, o de crânio despovoado, só pele e osso, não sou eu,
Bebendo café, como eu, numa pizzaria infecta,
Com gestos parentes daqueles que eu próprio efectuo
Como um malabarista com o pacote de açúcar entre os dedos
E sobre a xícara obscura,
Porém, ele não sou eu, porque o observo
(Ou fantasio),
E ele não, ou se é ele que me fantasia,
Fá-lo sem sequer extrair os olhos da xícara
E do rio branco de grãos que escorre do alto para o seu café.

Levanta-se da mesa:
É magro, e nas suas calças, gordas e sem cinto,
Enfia pontas soltas de uma camisa de flanela.

Não há mais que isto, não há.

III

Que Alguém foi que receitou a minha pobre mãe que comprasse um hamster?
E o hamster sobe uma escada que roda sobre si,
eternamente giragiragiragirando,
Com o mesmo efeito que um vizinho flácido que se transforma em atleta
sobre um tapete rolante:
Nunca ninguém progride, essa é que é essa, se é certa a redondez do mundo.

Estava eu embriagado quando criei este mundo?
Não seria melhor que o caos permanecesse,
Em vez de um fiat lux de que saíram
Hamsters, lémures, velhas enrugadas e empéroladas,
Professores medíocres nos seus casacos de bombazina verde,
Borboletas propagando tempestades
E uma boneca a um instante de ganhar vida e me sorrir,
Mas que talvez me não sorrisse, ainda que a vida a ganhasse...?

Estava eu embriagado? De álcool? De café ou de que fé?
Ou bêbedo de que absoluta falta de fé?

Deus-espelho sacode os ombros.
Não há terror: se ao menos houvesse terror.

Clama, ao menos, por que o barbeie.

IV

E nada senão isto.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

método para reformar sentimentos negros contra os filhos

há excesso de nervos em certas almas, como há excesso de ureia em certos sangues. e qualquer regime para almas exasperáveis deveria evitar alguns tipos de ruído, os desapontamentos e a desobediência, a tosse, a chuva, a estupidez, a desobediência, a incompreensão e a desobediência. é pois muito difícil que o pai de um adolescente se mantenha fiel a esse regime de evitamentos, posto que, no crescimento de um adolescente, o que o faz precisamente crescer é um concentrado de ruído, desobediência, estupidez e tosse. todas as manhãs, contudo, acordo amando profundamente o meu adolescente. é ao longo do dia que o amor me vai sendo amputado; mas mesmo amputado o sinto, a esse amor, como os homens fisicamente amputados continuam sentindo braços e pernas que lhes explodiram e não existem. e é também verdade que, tal como a cauda de uma lagartixa, também este amor se renova matinalmente. o que terei de fazer é agarrar-me todas as manhãs ao amor renascente: olhar atentamente o rapaz durante esses minutos em que, na cama, todo ele resplandece, e o único ruído que faz é o que faz a dormir, e não desobedece porque não desobedece ao sono, nem é estúpido, porque sonha, nem tosse, porque dorme. seguidamente, há que não deixar que a raiva tome completamente posse de mim. a raiva acabará tomando posse de mim, mas se conseguir que não tome logo posse completamente, estarei adiando, estarei adiando. hoje adio por um segundo, amanhã, por dois, por três, e é um exercício de paciência e contenção. mas é imprescindível estar perfeitamente consciente de que o inimigo é poderoso; e de que o inimigo não é o adolescente, e sim este comportamento que parte inexoravelmente de mim e, no entanto, não reconheço como sendo meu, este comportamento que dispara, sem travões, contra o filho, este comportamento dotado de um sistema nervoso próprio e uma fúria própria, maior do que a minha própria fúria. preciso vigiar quotidianamente este inimigo. e matá-lo sempre um pouco mais. mesmo sabendo que é a mim, e a mim só, que mato um pouco mais.



quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Ligeiro Suicídio

apetece, às vezes, morrer,
incomprometido com a morte:
nada demasiado eterno.

morrer só como quem vota
sem convicção,

apenas como um protesto,
apenas como um castigo

contra o regime da vida.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

À Falta de Outro Nome, Alegria

Olha a mim:
Mas olha-me com a infalível finura do perigo,
se não eu não te vejo:
Se não, eu mais não te vejo mais do que pensar-te muito,
Que é ver-te quase mesmo, mas sem te ver mesmo.

Olha-me num olhar que não repita nenhum outro,
Que me sobressalte e, depois,
Dá-me só um inócuo minúsculo franzir de tempo
Para que eu serene fundo

(
Ah, és tu),

Antes de iniciar esta alegria sem nome
(Chamemos-lhe, pois, alegria),
Esta outra entoação da alma, esta emanação da alma:
Ah, és tu!,
Que ocorre ao devolver-te
O meu olhar no teu olhar.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

limite

nenhuma luz de nenhuma frase,
nenhum pouco desse sentido que as palavras emitem
perfura mais longe do que o terceiro degrau da mente:

não há já palavras nem frases no quarto degrau,
não sobrevivem aí plantas verbalinas;
muito menos no quinto degrau
ou do quinto degrau abaixo,
aí para onde nem freud ou nietzche ou vasco da gama,
no dia cada um deles em que fugiu de casa,
foram capazes de querer sequer olhar.

(esses nunca desceram mais do que aonde chega o elevador...)

e o sétimo degrau é já a respiração do mal,
a obscura tensão que apavora os adamastores
e onde nada perdura,

onde há só o mais cego, silencioso
e inumano
dos animais:

onde há só o homem.






sexta-feira, 10 de julho de 2009

BREVE TARDIO MESTRE


A Nuno Morais


como te houve tempo para seres tudo o que devias ser
nesse teu clarão de infinito,
esse perfeito voo capturado em pleno voo
que foi o tempo breve e trágico que te houve.

sábado, 27 de junho de 2009

suspenso à porta da noite

sem nem respirar, de espanto, estaco à porta da noite.
como em puto, temo entrar nela: mas ela é que me entra
e, devagar maligna, dilui todos os contornos.

temo tanto que a noite me seja o destino, como
a água é o puríssimo destino de quem se afoga.

temo que ela seja a casa vazia e ninguém perto.
temo que seja o desfazer-se da minha unidade.

terça-feira, 23 de junho de 2009

o inferno subtil

«[...] e portanto, a existência do fado torna-se uma prova indiscutível da existência do Inferno, que é sempre um inferno pessoal.»
Gil Duarte, De que o Céu Pode Não Existir, Mas o Inferno Existe




bem-vindos vós todos, bem-vindos, pecadores,
ao lugar onde ninguém é senhor nem servo.
não tropeceis. não inventeis pequenas dores.
persista só o mal que aqui vos eu reservo.

cuidado, não vos distraiais, não tropeceis.
é que há uns degraus. embora não haja lume
nem lei: a única lei é não haver leis
que não sejam as leis da culpa e do ciúme.

não espereis um mal que não sofrêsseis outrora
ou um que não tivésseis feito já sofrer.
o mal nunca é novo. mas, aqui, demora:
aqui não tem cura nem se pode esquecer.

olhai bem que não tenho chifres ou tridente
nem tenho cauda nem enxofre nem negrume;
e a isto tudo se resume: eternamente
a tortura eterna da culpa e do ciúme.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

CULPOGRAFIA

quem é o velho que vagueia
por corredores infinitos
da memória, dorida veia
onde vivem mortos e gritos?

quem será pois este que assombra
os labirintos da tristeza:
este espírito ou esta sombra,
a culpa em cinza; e sempre acesa?

quem é este que se demora
onde o não podemos achar,
dor que na cave de nós mora
e ninguém sabe exorcizar?

a figura esguia de um grito,
quem será?
o mal que se tornou um rito,
de onde vem?
esta culpa feroz e má
revolve em nome de quem?

nós somos culpados de já
não ter mais lágrimas em flor
nem te orar por alma. mas se há,
acaso, medida da dor,

a nossa dor ultrapassou-a,
voz do tamanho do vazio,
passado que rasteja, à toa,
para baixo do chão sombrio
onde o teu corpo se esboroa
sob esse musgo velho e frio.

é verdade: já não oramos.
já quase nem saudades temos.

é verdade: já não choramos.

é aceitável: já morremos.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

revelação proibida

ante a possibilidade de uma tal revelação,
uivarão, assustados, esses cães, fugirão os ratos,
as beatas, na igreja, santos nomes maldirão,
formar-se-ão bichas de carros em desertos e matos.

ante a possibilidade de uma revelação tal,
que eu não quero fazer, mas quem sabe se me não descaia,
nuvens pretas concentrar-se-ão sobre mim, sobre o mal
de uma simples palavra nos meus lábios que tudo traia.

por isso não posso dizer, não direi o quanto te amo,
não vão as órbitas de astros pôr-se a desvairar sem fim,
não vão as vagas do mar voar até ao infinito.

e é por isso que nem à noite, a dormir, teu nome chamo:
é um segredo pesado de mais, não só para mim,
mas para o mundo, que não suportaria um tal grito.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

ritual da mágoa

após ter passado a mágoa, aquilo que fica
é o esquema da mágoa, é o seu monograma.

sofre-se histérica e estereofonicamente,
não esmoreça em nós a dor que já nos não dói.

composição das coisas

no que muda há isto mesmo, que muda tudo
e que, portanto, é tudo tão irrelevante
como esta voz que nos ilude e que, contudo,
nada mais é do que sopro, do que ar vibrante,

como a eterna unidade entre as nossas almas,
que traz um secreto prazo de validade
inscrito em si, ou como estas tardes tão calmas
que o tempo amargo em muito pouco tempo há-de

desfazer,
a verdade certa é que não há
verdade alguma, ou alguma eternidade
ou seja o que for que se não esgote inteiro:

veloz ou vagarosa, a mudança se dá
na luz, na carne, na paixão ou na amizade,
na pedra, na língua ou no braço mais certeiro.

EM VEZ DE MIM

Tu,
Quem mais me compreende
E a que me compreende menos,
Que me pertences
Até onde eu posso pertenceres-me
E em nada me pertences nada,

Tu,
Realidade efectiva, inteira, plena
De que eu sou um reflexo carente,

Tu,
Que existes, afinal, sem mim que quero
Que existas em mim, que, sem ti,
Não existo,

Em cada momento te vais um pouco mais
Para longe da minha solidão

Em cada momento és, cada vez mais,
Distância, ausência, o som da água,
O ecoar da mágoa no vazio magoado,
A noite em que te vou perdendo
Mais e mais ainda.

E na solidão sem nome sem nada
Só um ciúme desapossado
Arde já


Em vez de mim


.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

perdas e ganhos

não há pessoas felizes.
e nem sequer todas as pessoas felizes que há
são, de facto, pessoas felizes.

em tudo o que se ganha há infinitas perdas,
não inteiramente contabilizadas.
mas seria melhor nunca se ganhar
por causa e por medo
do que se perde intimamente ao que se ganha?

aliás,
há algo muito parecido com felicidade em certas perdas.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

à transparência

à transparência doirada desta luz matinal,
irrompem no nosso mundo, como ruídos sem fé,
dedadas nos copos, caspa incrustada nas lentes dos óculos,
átomos de poeira suspensos no ar da luz
e reptilianas manchas nas paredes da alma.

à clareza enganadoramente clara da manhã,
revela-se a memória das coincidências imundas
e os melancólicos vestígios da noite passada:
uma pilha suja de pratos, palitos, caroços
e fantasmas que não chegaram a ir embora.

sábado, 30 de maio de 2009

retorno ao retorno

o eterno retorno reduz-se a isto:
um soluço que sobrevém no nada,
a ténue perfeição que reconquisto,
a trémula clareza regressada.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

cidades invisíveis

há cidades - mas poucas - que pertencem
ao olhar que as contemplou noutra vida
e de que este olhar retém a essência.

há cidades - mas poucas - que carecem
de nós e da nossa presença nelas,
do nosso encantamento, para serem.

terça-feira, 19 de maio de 2009

ode a uma alma estática

eis uma alma que nunca se apressa:
demora, calcula, como é próprio de almas terrenas.
tem na paciência do cálculo a sua mestria,
rara virtude entre as bravas breves aves do nosso tempo;
tem na prudência a antena da sua sabedoria,
rara virtude em tempo de aguerridos guerreiros leões
cujo saber
é músculos, é guerras, é garras, é dentes.

eis uma alma que não ganha balanço:
aventura-se pelo mundo sem sair do mesmo ponto.
só na fuga é rápida: e mesmo aí, escapa sem ao menos se deslocar,
fugindo para o centro do mesmo ponto, para sobre si mesma.

a troça dos leões, como viquingues da selva,
a troça das águias, no seu ascender sobranceiro,
a troça dos grandes descobridores
de mundos que existiam já sem o serem ainda,
a troça de santos mártires incapazes de troçar,
a troça toda de todos eles
quase não pode afectar uma alma assim:

em vez de responder, em vez de usar em vão da sua energia,
dobra-se mais para o mesmo ponto: para dentro de si.

os viquingues nunca duram:
deixá-los troçar. deixa-os ir.

domingo, 17 de maio de 2009

SONETO A UM DEUS MOTORIZADO

Paro a minha desinteressante viatura num semáforo; ao lado, passa velozmente por mim um jovem motard. Para ele não existem semáforos vermelhos. É um deus! Dedico-lhe este soneto de inveja...


um leve e ruidoso deus, de moto,
passa num relance, camisa alada,
em direcção ao seu destino ignoto
que invejamos, sem dele saber nada.

para pessoas mortais, o futuro
é só um presente mais duradouro;
viver é-lhes como sentar num muro:
ter no que foram sempre o seu tesouro.

mas não o deus alado, aqui ao lado,
onde por um instante terá sido
o brilho de impossíveis entrevistos.

escapou-se já, veloz e bronzeado,
deixando um fumo vago e atrevido,
o esfumar-se de sonhos imprevistos.

sábado, 16 de maio de 2009

REVELAÇÃO MAIOR

a roupa estava estendida no arame.
mas. mas. mas.
mas fora estendida por j. azevedo e silva,
que o mesmo é dizer:
erradamente estendida.

«isto é realmente um poema?»,
inquire, na sua candura fatal, a amiga do poeta:
«que faz disto um poema?».
com um raio, amiga:
de facto, que faz, disto, um poema?

«as camisas»,
explicava a sra. dona azevedo e silva ao sr. azevedo e silva,
«as camisas não se dependuram pelas pontas,
«os lençóis estão a tocar no chão,
«não pode ser, não pode ser, não pode ser.
«as cuecas têm de estar todas juntas, deste lado,
«e as roupas da menina ficam aqui.
«não gosto de molas de cores diferentes.»

há razões para além do entendimento de j. azevedo e silva
nesta matemática da roupa estendida.

porventura,
o sentido mais frágil e mais forte do universo
repousa no segredo pitagórico da roupa bem estendida.
j. azevedo e silva não tem a menor suspeita,
pobre não-iniciado,
das inversões de ciclos e cataclismos,
das culpas e malefícios tremendos
que advirão em virtude da sua tarefa erradamente cumprida.

e se falo das razões mais obscuras do universo,
à beira de uma revelação que por um pouco se não revela,
não posso crer que só por um pouco não fiz um poema?

quinta-feira, 14 de maio de 2009

AUTO-RETRATO INCONGRUENTE

este meu corpo hirto e escanhoado
de pobre estrito cumpridor de horário
é, na essência, barba e pêlo indomado,
é mais do que eu, todo ele é muito e vário.

meu corpo casado com a virgindade,
na essência experimentou, porém, já todas
as mulheres, na funda intimidade
das mais secretas e felizes fodas.

sento-me à secretária de homem só,
eu, cuja essência é não ter secretária
nem coisas fixas e dadas ao pó;

sento-me o corpo (máscara diária)
e escrevo: pobre condenado ao dó
de a própria essência existir contrária

quarta-feira, 13 de maio de 2009

há uma infinita poesia

há uma infinita poesia
na surpreendente beleza de certos erros

sábado, 9 de maio de 2009

a face negra da perfeição

poesia:
insónia, sinfonia
da orquestra nervosa de células vivas e mortais.

poesia:
álcool cafeína
destrambelhamento
desejo de abismo
cio e asma
um lado triste
e o ruído do roer
de vermes que trocaram o corpo do morto herodes
pelo corpo respirante do poeta.

poesia:
os sentidos agoniados
mas nunca agonizantes
os lobos a uivar aos ouvidos
o excesso de medicação
o azar e a fé negativa;

e de todas estas coisas irrompe, por acidente, a perfeição;
raramente; por vezes, só:

mas que vale a própria perfeição
se toda a perfeição é quebrável
e mesmo o absoluto tem patas de bicho

se até os sonhos de juventude do poeta
ganharam tanta celulite?

mas tem de se recomeçar sempre,
entre o grotesco e o sublime:

tem de se recomeçar uma vez mais

terça-feira, 5 de maio de 2009

niilismo

uma saudade em tudo quanto existo,
uma noção de perda em quanto toco.
sentir já ter perdido tudo isto,
tudo me ser tão próximo e tão pouco

mesmo essa carícia em que me detenho
em teu rosto, em teu seio, em tua mão:
ainda eu os tenho, e já não tenho,
ainda eu lhes toco, e já não são.

ETERNO RETORNAR

Não sei trazer Lisboa no meu peito
Feito de outras memórias, outros sonhos
De espaço e de luz de um tempo desfeito,
E sons que me duram, belos, medonhos.

Já não resta, em mim, céu para gaivotas.
Olho o meu coração: nele não vejo
Colinas, mas a luxúria de rotas
Onde se perderia o rio Tejo.

Corre-me um sangue desenraizado.
O meu passado vai passando mais.
E eu, que lhe sinto o cheiro na pele,

Sou agora uma espécie de exilado
Que se desprendeu de um mundo, no cais,
Mas sem nunca chegar a sair dele.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

ler

uma pele é o limite da consciência,
como outra pele envolve o corpo:
e nada se pode conhecer para lá do finito
da pele da consciência.

a não ser quando se lê:

porque a leitura
é a mais solitária crítica da solidão,
é a crítica da pele interna,
como o vértice de um vidro
pode ser a crítica da pele do corpo.

a não ser quando se lê,
porque ler é largar-se de si,
inexistir como si
e existir como intensa flutuação
na música silenciosa do sentido

a não ser quando se lê:

porque ler
é praticar em si
a saída de si mesmo

porque ler é praticar
em si mesmo
a viagem nos outros

sábado, 25 de abril de 2009

IRONIA

o menino cristiano ronaldo é um puto desamoroso de si.
não falo, claro, de Cristiano Ronaldo,
o que fez do balê um desporto viril
apreciado por machos histéricos,
mas
de cristiano
ronaldo
da silva
mendes
castro
pontes.

por que haveria de haver um fanático de Cristiano Ronaldo
no momento de escolher o nome do menino
que se tornará este puto embaraçado em desamor,
óculos,
uma teia metálica nos dentes

este puto embaraçado
nas notas boas (que jogam contra ele)

nariz afilado,
cheiro nos pés,
voz subitamente máscula
a irromper por dentro da sua voz infantil

este puto embaraçado
nos risos afiadíssimos das miúdas quando passa

pêlos errados,
uma imagem errada no espelho,
um pai,
uma mãe,
um irmão mais velho

não saber dizer palavrões
não saber andar de bicicleta
não saber nadar

este puto embaraçado
em se chamar cristiano ronaldo
e nem saber jogar à bola?

quinta-feira, 23 de abril de 2009

DA NATUREZA DA SAUDADE

uma incurável memória que se gera e reproduz no peito,
a escassos milímetros do mamilo:
tal é a saudade.

é uma doença infiel, a memória quando é doença.
é uma doença imprecisa, a saudade:
terrível doença para quem quereria,
ao menos,
sofrê-la com toda a exactidão.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

SUBLIMAÇÃO

Este surpreendente braço de água
Que no meu íntimo tem a nascente
É uma via pra fugir de mim: trago-a
Dentro, e nela me escapo e fico ausente.

Este poder de criar transcendência
Não sei se redime ou se é servidão:
Mas toca o pior da existência
E faz dele um modo de perfeição

A minha mão íntima cria Deus
Para me conduzir à beatitude:
A lava que jorra em mim é sagrada.

Esta poesia é um tecer de véus.
Não sei se me liberta, se me ilude:
Vale mais que tudo, e não vale nada.

LUZ

não há luz que não seja boa nem bem-vinda
mesmo a luz que dói Mesmo a que primeiro cega
mesmo a luz terrível da lucidez que ainda
está no seu início Que ainda agora chega

toda a luz tem um sentido à luz de que vale
mesmo aquela que se não escolhe e ao cumprir-se
traz algo de obsessivo Traz um dom de mal
que compra a nossa alma e fá-la consumir-se

mesmo a luz breve que mal iremos sentir
e por que haja de pagar-se na escuridão
eterna É tudo quanto é no seu momento
perfeito Que nunca se pode possuir
Mas nunca alumbramento algum é tido em vão
A luz é para além do arrependimento

terça-feira, 21 de abril de 2009

NÃO-SER

Teu corpo, meu amor, é belo e mata:
Se o afago, todo ele se desata
E parece que sinto que se aloja
Em meu corpo, que te aceita,
despoja
De quanto não és tu e não é teu.

Teu corpo é demasiado belo.
Quero deter-me nele: quero sê-lo.
Porém,
Desfaz-se-me o ser, sem nada mantê-lo:
E
Nem chego a ser tu: nem sei já ser eu.

Mágoa de Lúcifer

o anjo que mais longe ambicionou
e conquistou a própria orfandade
eu sou: e sou tormento no que sou,
eu: a exuberante infelicidade

nada de quanto fiz é quanto quis,
em nada meu sonho é o meu destino:
minha raiva é tristeza e ninguém diz
onde se diz furor e desatino

onde se diz o mal que eu causo e faço
e se diz da rebelião total
de anjo que se liberta e se cai

ninguém diz de mim a lâmina de aço
que me tortura e é o mal do mal:
todo eu ser tão livre: eu ser tão sem pai.

Do Erro como Dever

sempre os erros desimportantes,
em virtude dessa mesma desimportância,
tendem a dissolver-se no tempo.

todavia,
os erros mais graves e mortais,
os erros grandes e graves praticam
a atracção gravitacional própria de um destino.

alguns erros maiores há,
que exigem de nós
uma dedicação obstinada
uma morosa e amorosa responsabilidade.

alguns erros maiores há,
que são
como um contrato sagrado com mefistófeles:
devemos respeitá-los
virtuosa e escrupulosamente:
há que cumpri-los até ao fim.

A La Recherche du Temps Perdu

num sismo em verso, inverso em tudo
a todos os sismos inclusos no conjunto natural
de todos os sismos,

num sismo inverso
que é, digamos, um glorioso e benéfico acidente,
digamos: um desastre criador,

num sismo que não extingue mundos,
antes instiga mundos antes extintos,

opera-se a verdade da concertação, hoje, destes seres
cujo concerto,
na sua verdade, só ao passado pertence:

e tremeluz a luz
reflectida sobre os copos de vinho tinto
e soam gritos e estilhaços de riso.

e ocorre uma levitação colectiva,
como de um grupo de santos embriagados:
e o mundo extinto, que nem na memória existia já,
revém quase, quase
quase
quase...

persiste,
porém,
uma derradeira película,
uma última resistência do tempo:
talvez não reavamos o passado:

mas, em todo o caso, certo é que levitamos em grupo,
como um grupo de santos.