quarta-feira, 25 de abril de 2012

doravante meu rosto

não existe despedida que não contenha em si uma culpa. pode a culpa até ser minha. porém é mais vasta que eu: e não creio que pudesse ter criado, sozinho eu, qualquer coisa tão imensa. toda a separação encerra em si uma culpa, mas há nesta separação, também, para além do sofrimento, o findar de um sofrimento: ainda que a culpa seja um novo sofrimento, que principia. há uma tal ausência de nós em nós dois quando juntos, que é maior que a que há em cada um de nós apartado. olhas para tudo quanto fizemos ao longo do envelhecer do tempo, como se tivéssemos sido os carpinteiros desta mesa, destas cadeiras, como se fossemos os vidraceiros destas janelas, os pedreiros destas paredes, olhas para todo o passado enredomado nestas formas presentes, madeira, pedra, vidro, ar, terra, e o fogo na lareira. há mais drama nestes objectos silenciosos, do que se fossem fotografias [tu e eu na serra, nós dois mais minha mãe, e tu com o cachecol e o gorro que te ofereci em certo natal, tu e eu num jantar de anos, não sei já de que amigo, nós dois multiplicados pelo mapa de portugal, olha no porto, olha na várzea, em sintra, nós dois nós dois nós dois]. e contudo amanhã estenderei, sei lá a partir de onde, de que sítio e em que cama, estenderei o braço e não estará o teu como destinatário do meu gesto, nem estarás tu como destino de mim: sentar-me-ei estremunhado no incerto escuro. tristeza, saudade: que significam? sentirei tristeza e sentirei saudade, mas que significa isso precisamente que sentirei? sentirei culpa, e toda a tristeza, e a saudade, ela toda, se reconhecerão imediatamente na culpa, e na culpa me reconhecerei como num espelho: esse será doravante o meu rosto.

sábado, 27 de agosto de 2011

O Poema sob o Poema

Critica-me o crítico do poema:
«Carpintaria sem alma».
E não sabe
Que fluxo extravasa sob a fria calma
Da medida que aplaina o que não cabe
No poema.

Há que descer aos sub-solos do poema,
Onde tudo são sensações em atrito,
Na incerteza
De uma sensibilidade de doido aflito,
Em guerra com a beleza
Do poema.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

a indistinta felicidade dos outros

o vento sacode as lentas orelhas
de um cão desconhecido, de um amarelo que eu nunca vira em cão,
à janela de um mercedes muito antigo e muito velho.

há uma espécie de bondade feliz irradiando de um cão amarelo
ao vento vagaroso, ou de orelhas vagarosas ao vento,
num mercedes muito antigo e muito velho,

e essa bondade feliz contagia a família que,
daqui,
num carro atrás,
não consigo distinguir: mas quem me dera pertencer ali.
pertencer àquele mercedes e àquele cão,
ou a uma outra constelação qualquer assim,
de modo a que simplesmente eu não fosse eu agora,
eu não fosse eu aqui,
nem eu nem agora nem aqui.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

desencontro

não sei em que coordenadas, na imensidade
da nossa relação, deixei, meu filho,
de te ver. sinto agora, às vezes, um reflexo
de ti, mas nem sempre; ou oiço
uma música como tu, e penso: é ele.
mas não és.

não és:
e estes ecos não acordam
o meu universo de súbito apagado.

em certas coordenadas da nossa proximidade,
meu filho, a proximidade partiu-se
em duas coisas:
uma proximidade que tenho agora comigo mesmo,
como se viesse asfixiar-me,
sozinho, vazia,
e teres descido de mim embora,
como se nada mais do que isto: teres-te ido embora.

oiço às vezes uma raiva,
mas não há já tu dentro dela,
oiço às vezes um riso,
mas não há tu dentro.

oiço a saudade. mas dentro dela
tu não estás. só eu só.

terça-feira, 15 de março de 2011

entra na loja

entra na loja,
e todo o seu entrar é um expressivo risco.

pressinto o zzztiiin de um olhar espadachim contra o meu,
e o meu olhar é-me arrancado das mãos ao primeiro golpe.

sinto (sinto com pele do meu pensamento) a sua saia, que se encolhe e engelha
ao mover das pernas longas dela,
de ave pernalta.

vejo-lhe o perfume, como se tivesse uma forma.

entre ela e mim nada senão nada:

este subtil e sublime nada que se chama desejo,

esta oculta alma bravia capaz de trair tudo e todos
para seguir uma mulher sem nome,

e que não sabe o meu nome, nem precisa de o saber
para me nomear
e chamar

na tonalidade total
do seu mero entrar na loja.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

teorema

tens a exactidão e o pudor de um teorema matemático.

unicamente por isso,
é que a tal ponto desejava passar sombrios, desprezadores dedos nos teus cabelos,
tuas chavetas contidas
[ou serão parêntesis rectos contendo
símbolos sem a menor angústia existencial?]

desejaria, só por isso,
encarnar momentaneamente duchamps
e ter coragem de em ti desvendar um repelente bigode
que defina o teu sorrir sem tristeza nem alegria.

não é que falte algo à tua perfeição:
a não ser,
bem entendido,
o drama vital das imperfeições.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

toda a beleza é uma escolha

o seráfico vagar aristocrata ou a veloz dispersão anarquista?
a ondulante imobilidade de um cabelo ideal ou o bravio desgrenhado teu?
o sorriso da gioconda ou o riso irresistido?
a melodia da fala ou a fala incerta e duvidosa,
a nítida sombra que aperfeiçoa o mundo ou a luz gritante que não deixa olhar?