domingo, 14 de março de 2010

LEITURA DOS DIAS BONS

Odeio os dias bonitos por fora,
superfícies em que o sol se reflecte
e a tristeza dir-se-ia que se inflecte,
como a carne que o lume aos poucos doura.

Como se nesses dias não houvesse
o mau-cheiro de uns sapatos imundos
(são os meus próprios sapatos, parece!);
como se não fosse o melhor dos mundos

possíveis (e se é, que esperança se vê?).
Há saudades, como juros de mora
e coisas que apodrecem: e tudo é

um choro por dentro, mas que se ignora:
maldita a dislexia que treslê
os sinais de um dia belo por fora.

sexta-feira, 12 de março de 2010

À ESPERA DE CONHECER KANT

Chamamos a isto vida: uma árvore que se desapega, despega e desmembra; não falo da minha vida como se tivesse que ver unicamente com o ovo motorizado que partilha, não sei por que injusta figura de estilo, o nome de "automóvel" com os velozes e completos automóveis que me não vêem sequer; nem com a da força do desleixo que o dissolve, ao meu quase-automóvel, sob a forma de humidade e lixo, lâmpadas de faróis que se fundem, baterias impotentes, riscos na carroçaria, paredes ou caixotes que das profundezas da terra contra ele emergem, subitamente, pela frente ou por trás; mas esqueçamos o automóvel; também não falo da minha vida como se tivesse que ver unicamente com a caldeira que interrompe o percurso do gás, numa ofensiva pausa do seu trabalho, qual vulgar funcionário público, no momento exacto em que eu esperava, da água que me chove no duche, a benção de ser quente; nem que tenha que ver só com a tosse que se aloja no corpo todo da minha mãe, afugentando-a desse corpo para fora, como um inquilino selvagem, poderoso, egoísta e persistente, que a expele sabe-se lá para que becos esconsos da eternidade; não só com a inesperada desamizade de amigos, a brutal desfiliação de filhos, o mau gosto, o mau-hálito, o mau-hábito, a idade, a raiva, a dor, os joelhos, as saudades, as traições, as insanidades. Chamamos a isto vida: esta agoniada espera pela saída da vida para fora; chamamos vida à espera do que vem após, um espectáculo sobre o qual ainda não lemos suficientemente: a que horas principia? com que actores? Deus sempre será o protagonista? quem compôs a música? iremos encontrar, na grande secreta ignorada sala, amigos que saíram mais cedo do que nós? que nos é permitido esperar? (Kant irá receber-nos? E o meu pai?). Chamamos a isto vida. A isto.

domingo, 7 de março de 2010

EVOCAÇÃO DE UMA NÃO AMADA JÁ

Não mudou teu rosto, mas tudo o resto:
O corpo, que já pouco falta ao meu
E onde a memória não lê mais o texto
De um romance que nos não mereceu.

Um olhar brando, um leve mover teus
Sobressaltam-me ainda, mas tão tristes
Que é como cheios de ausência e adeus.
És real: em sonho é que já não existes.

DOGMÁTICA

Esta luz que de pronto se desfaz,
Este som brevíssimo e cristalino,
Esta serenidade que é capaz
De me fazer olhar o olhar divino
Não me tornam sequer menos ateu.

Eis a fé mínima por que eu morria:
Creio no deus fugaz que é um olhar teu.
Na forma invisível da melodia.
No cego deus à solta que é um riso.
No deus qualquer coisa mortal e esguia
Que é, sobre a dor que, eterna, cicatrizo,
Este lamber de sol na manhã fria.

Às vezes, no meu corpo, concretizo
O pudico fulgor de um certo dia.
E sobre a dor que, eterna, cicatrizo
Perpassa a breve divina alegria

EU BUDA

Sou o Buda silencioso, imenso:
No meu ventre liso, rotundo e lento
Se contrai e se concentra, suspenso,
Tudo o que seja vida e movimento.

Nada se move: eis a sabedoria:
Perder tempo, ver escoar-se o momento,
Fixar na inacção a sábia via
Para o absoluto esvaziamento.

Sei que uma vez passado o tempo, fica
Ainda e sempre o arrependimento:
A saudade de quanto se podia.

Sei que passado tudo ainda pica
O pior e mais infernal tormento.
Mas sou Buda: e esta é a minha via.

DEUS ABSCONDITO

Um segredo
É uma refracção no líquido da penumbra
Em que te quebras de ti,
Separando-se tu ambos:
Um segredo
É um superavit invisível de ti,
Um fantasma que te infecta:

Pois possuir um segredo
Significa:
Um segredo é o Deus teu tirano.
És a criatura criada pelo segredo que te criou:
Pertences-lhe.

O segredo de que és segredo
Ser-te-á destino,
Ser-te-á carácter,
Ser-te-á sentido, razão, tendência, tensão, horário.
Será a tua alma.
Será o teu Deus:

E nenhum outro poderás adorar,
E nada
E nenhum mais te sobreviverá.