quarta-feira, 25 de abril de 2012

doravante meu rosto

não existe despedida que não contenha em si uma culpa. pode a culpa até ser minha. porém é mais vasta que eu: e não creio que pudesse ter criado, sozinho eu, qualquer coisa tão imensa. toda a separação encerra em si uma culpa, mas há nesta separação, também, para além do sofrimento, o findar de um sofrimento: ainda que a culpa seja um novo sofrimento, que principia. há uma tal ausência de nós em nós dois quando juntos, que é maior que a que há em cada um de nós apartado. olhas para tudo quanto fizemos ao longo do envelhecer do tempo, como se tivéssemos sido os carpinteiros desta mesa, destas cadeiras, como se fossemos os vidraceiros destas janelas, os pedreiros destas paredes, olhas para todo o passado enredomado nestas formas presentes, madeira, pedra, vidro, ar, terra, e o fogo na lareira. há mais drama nestes objectos silenciosos, do que se fossem fotografias [tu e eu na serra, nós dois mais minha mãe, e tu com o cachecol e o gorro que te ofereci em certo natal, tu e eu num jantar de anos, não sei já de que amigo, nós dois multiplicados pelo mapa de portugal, olha no porto, olha na várzea, em sintra, nós dois nós dois nós dois]. e contudo amanhã estenderei, sei lá a partir de onde, de que sítio e em que cama, estenderei o braço e não estará o teu como destinatário do meu gesto, nem estarás tu como destino de mim: sentar-me-ei estremunhado no incerto escuro. tristeza, saudade: que significam? sentirei tristeza e sentirei saudade, mas que significa isso precisamente que sentirei? sentirei culpa, e toda a tristeza, e a saudade, ela toda, se reconhecerão imediatamente na culpa, e na culpa me reconhecerei como num espelho: esse será doravante o meu rosto.