sexta-feira, 14 de maio de 2010

VISÃO

É o meu olhar de artista que transfigura
As coisas, trazendo impureza ao que há de puro,
Dissolvendo as linhas, o contorno, a espessura,
Dando intensidade aos clarões de um céu obscuro?

É o meu olhar de génio que impõe o difuso,
Que afasta e que dilui mesmo as formas mais graves,
E que tudo faz problemático, inconcluso,
Profundo, incerto, como o movimento de aves?

Mas eis o mundo normal que me é devolvido;
Eis os traços, os limites, a geometria;
Eis a perspectiva exacta e já sem ruído.

Repus os óculos: redefiniu-se o dia.
Não consigo não estar um tanto ressentido:
Todo o meu génio se resume à miopia.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

PURO ESPÍRITO ATRAENTE

Algo há divino na sua timidez,
Na exibição de passar despercebida.
Algo diáfano perturba em sua tez,
Visão leve, quase não mais que pressentida.

Apesar de sua tímida claridade,
Como se fosse luz difundida no ar,
Vou observando a discreta curiosidade
Com que observa seu próprio corpo, devagar:

O desenho proibido de suas mamas,
A frescura da sua forma evoluindo,
Como se só a si mesma se apetecesse.

Falo-lhe em silêncio: «É a ti que tu amas».
Surpreendes-te. E, vagamente sorrindo,
Deixas que te olhe e fixe mais do que devesse.

domingo, 2 de maio de 2010

ASSOMBRAÇÃO

O teu cheiro subtilmente se desloca.
Antecipa-te,
É um cheiro que tem pele,
Traz consigo, à tua frente,
Os teus inúmeros sentidos todos
(Para me procurar assim, para me encontrar sempre,
Deste modo).

Na sua intensidade se entalha,
Porém,
Irónica e maguosamente,
A ausência de ti: o teu cheiro não impregna a casa,
Não está guardado em recantos ou em objectos,
Como se fosse o segredo deles
(Paradoxalmente, porém, à sua superfície).
Visita-me.
E cansa-se, e vai-se.

Este cheiro é um fantasma: o teu fantasma.
Nunca sei onde o procurar.
Ele encontra-me.