sábado, 27 de agosto de 2011

O Poema sob o Poema

Critica-me o crítico do poema:
«Carpintaria sem alma».
E não sabe
Que fluxo extravasa sob a fria calma
Da medida que aplaina o que não cabe
No poema.

Há que descer aos sub-solos do poema,
Onde tudo são sensações em atrito,
Na incerteza
De uma sensibilidade de doido aflito,
Em guerra com a beleza
Do poema.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

a indistinta felicidade dos outros

o vento sacode as lentas orelhas
de um cão desconhecido, de um amarelo que eu nunca vira em cão,
à janela de um mercedes muito antigo e muito velho.

há uma espécie de bondade feliz irradiando de um cão amarelo
ao vento vagaroso, ou de orelhas vagarosas ao vento,
num mercedes muito antigo e muito velho,

e essa bondade feliz contagia a família que,
daqui,
num carro atrás,
não consigo distinguir: mas quem me dera pertencer ali.
pertencer àquele mercedes e àquele cão,
ou a uma outra constelação qualquer assim,
de modo a que simplesmente eu não fosse eu agora,
eu não fosse eu aqui,
nem eu nem agora nem aqui.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

desencontro

não sei em que coordenadas, na imensidade
da nossa relação, deixei, meu filho,
de te ver. sinto agora, às vezes, um reflexo
de ti, mas nem sempre; ou oiço
uma música como tu, e penso: é ele.
mas não és.

não és:
e estes ecos não acordam
o meu universo de súbito apagado.

em certas coordenadas da nossa proximidade,
meu filho, a proximidade partiu-se
em duas coisas:
uma proximidade que tenho agora comigo mesmo,
como se viesse asfixiar-me,
sozinho, vazia,
e teres descido de mim embora,
como se nada mais do que isto: teres-te ido embora.

oiço às vezes uma raiva,
mas não há já tu dentro dela,
oiço às vezes um riso,
mas não há tu dentro.

oiço a saudade. mas dentro dela
tu não estás. só eu só.

terça-feira, 15 de março de 2011

entra na loja

entra na loja,
e todo o seu entrar é um expressivo risco.

pressinto o zzztiiin de um olhar espadachim contra o meu,
e o meu olhar é-me arrancado das mãos ao primeiro golpe.

sinto (sinto com pele do meu pensamento) a sua saia, que se encolhe e engelha
ao mover das pernas longas dela,
de ave pernalta.

vejo-lhe o perfume, como se tivesse uma forma.

entre ela e mim nada senão nada:

este subtil e sublime nada que se chama desejo,

esta oculta alma bravia capaz de trair tudo e todos
para seguir uma mulher sem nome,

e que não sabe o meu nome, nem precisa de o saber
para me nomear
e chamar

na tonalidade total
do seu mero entrar na loja.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

teorema

tens a exactidão e o pudor de um teorema matemático.

unicamente por isso,
é que a tal ponto desejava passar sombrios, desprezadores dedos nos teus cabelos,
tuas chavetas contidas
[ou serão parêntesis rectos contendo
símbolos sem a menor angústia existencial?]

desejaria, só por isso,
encarnar momentaneamente duchamps
e ter coragem de em ti desvendar um repelente bigode
que defina o teu sorrir sem tristeza nem alegria.

não é que falte algo à tua perfeição:
a não ser,
bem entendido,
o drama vital das imperfeições.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

toda a beleza é uma escolha

o seráfico vagar aristocrata ou a veloz dispersão anarquista?
a ondulante imobilidade de um cabelo ideal ou o bravio desgrenhado teu?
o sorriso da gioconda ou o riso irresistido?
a melodia da fala ou a fala incerta e duvidosa,
a nítida sombra que aperfeiçoa o mundo ou a luz gritante que não deixa olhar?

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

busca

tal como um perfeito feito mágico
de um conto das mil noites e uma noite mais,
o que sucede é que,
na tua ausência,
és sempre tu quem me aparece
aqui em mim dentro,
seja qual for a frase que eu inscreva
no google da minha memória.

os gestos invisíveis

1.
agita os dedos da mão sobre a camisola de lã, desalojando migalhas que se habituam rapidamente ao chão. a mecânica de sacudir é rápida, mas há, nessa velocidade repetitiva, uma absoluta calma.

2.
senta-se com um livro sobre os joelhos. abriu-o, procura uma certa página. avança e recua no tempo das páginas. passa magotes delas. tira os óculos, com certo suspiro, trinca uma haste: a haste, em massa, parece um ponto de interrogação, como símbolo do seu pensar foragido mordiscando uma pergunta. desiste do livro.

3.
tosse. leva uma mão à barba não barbeada. ouve um ruído entre o frio e o quente. coça a nuca.

4.
a mulher está com um olhar abstraído, como esquecido de olhar, desfocando. o mínimo gesto acordaria este olhar, interromperia a distracção, como um brusco temor. mas ela contém-se: está quieta, suspensa da sua vida, descansando em seus pensamentos proventura interditos.

5.
ele encosta-se à janela. repara no seu reflexo e, através do seu reflexo no vidro, vê lá em baixo as árvores em que pousam os pássaros e o sol. tamborila com dedos. um dedo que parece passar a energia ao outro, que a passa ao terceiro, que ao quarto, que devolve o movimento ao primeiro, numa rotação de dedos que produz um som de madeira.

6.
e ela ergue-se, porque algo lhe apedrejou a distracção; (toda a distracção é uma adúltera: e apedrejam-na): e pergunta-lhe qualquer coisa. mas o homem não ouve e a mulher não torna a perguntar.

7.
também uma pergunta que se não ouve é um gesto invisível.

sábado, 1 de janeiro de 2011

ESPERAVA-TE

Esperava-te
Pequeno adulto que sou
Vindo do longínquo pretérito país de mim sem ter
Chegado a crescer nunca

Pequeno desajeitado de corpo
Que ainda entorna a chávena sem querer
Empurra ainda sem querer as pessoas e os pombos
Magoa sem querer
Destrói queira ou não queira

Esperava-te
Pequeno adulto com alumbramentos infantis
Ainda

Esperava-te
Só para me deslumbrar uma derradeira vez talvez
Perante o gesto surpresa com que
No lume apagado
Despertas novamente a chama