sábado, 30 de maio de 2009

retorno ao retorno

o eterno retorno reduz-se a isto:
um soluço que sobrevém no nada,
a ténue perfeição que reconquisto,
a trémula clareza regressada.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

cidades invisíveis

há cidades - mas poucas - que pertencem
ao olhar que as contemplou noutra vida
e de que este olhar retém a essência.

há cidades - mas poucas - que carecem
de nós e da nossa presença nelas,
do nosso encantamento, para serem.

terça-feira, 19 de maio de 2009

ode a uma alma estática

eis uma alma que nunca se apressa:
demora, calcula, como é próprio de almas terrenas.
tem na paciência do cálculo a sua mestria,
rara virtude entre as bravas breves aves do nosso tempo;
tem na prudência a antena da sua sabedoria,
rara virtude em tempo de aguerridos guerreiros leões
cujo saber
é músculos, é guerras, é garras, é dentes.

eis uma alma que não ganha balanço:
aventura-se pelo mundo sem sair do mesmo ponto.
só na fuga é rápida: e mesmo aí, escapa sem ao menos se deslocar,
fugindo para o centro do mesmo ponto, para sobre si mesma.

a troça dos leões, como viquingues da selva,
a troça das águias, no seu ascender sobranceiro,
a troça dos grandes descobridores
de mundos que existiam já sem o serem ainda,
a troça de santos mártires incapazes de troçar,
a troça toda de todos eles
quase não pode afectar uma alma assim:

em vez de responder, em vez de usar em vão da sua energia,
dobra-se mais para o mesmo ponto: para dentro de si.

os viquingues nunca duram:
deixá-los troçar. deixa-os ir.

domingo, 17 de maio de 2009

SONETO A UM DEUS MOTORIZADO

Paro a minha desinteressante viatura num semáforo; ao lado, passa velozmente por mim um jovem motard. Para ele não existem semáforos vermelhos. É um deus! Dedico-lhe este soneto de inveja...


um leve e ruidoso deus, de moto,
passa num relance, camisa alada,
em direcção ao seu destino ignoto
que invejamos, sem dele saber nada.

para pessoas mortais, o futuro
é só um presente mais duradouro;
viver é-lhes como sentar num muro:
ter no que foram sempre o seu tesouro.

mas não o deus alado, aqui ao lado,
onde por um instante terá sido
o brilho de impossíveis entrevistos.

escapou-se já, veloz e bronzeado,
deixando um fumo vago e atrevido,
o esfumar-se de sonhos imprevistos.

sábado, 16 de maio de 2009

REVELAÇÃO MAIOR

a roupa estava estendida no arame.
mas. mas. mas.
mas fora estendida por j. azevedo e silva,
que o mesmo é dizer:
erradamente estendida.

«isto é realmente um poema?»,
inquire, na sua candura fatal, a amiga do poeta:
«que faz disto um poema?».
com um raio, amiga:
de facto, que faz, disto, um poema?

«as camisas»,
explicava a sra. dona azevedo e silva ao sr. azevedo e silva,
«as camisas não se dependuram pelas pontas,
«os lençóis estão a tocar no chão,
«não pode ser, não pode ser, não pode ser.
«as cuecas têm de estar todas juntas, deste lado,
«e as roupas da menina ficam aqui.
«não gosto de molas de cores diferentes.»

há razões para além do entendimento de j. azevedo e silva
nesta matemática da roupa estendida.

porventura,
o sentido mais frágil e mais forte do universo
repousa no segredo pitagórico da roupa bem estendida.
j. azevedo e silva não tem a menor suspeita,
pobre não-iniciado,
das inversões de ciclos e cataclismos,
das culpas e malefícios tremendos
que advirão em virtude da sua tarefa erradamente cumprida.

e se falo das razões mais obscuras do universo,
à beira de uma revelação que por um pouco se não revela,
não posso crer que só por um pouco não fiz um poema?

quinta-feira, 14 de maio de 2009

AUTO-RETRATO INCONGRUENTE

este meu corpo hirto e escanhoado
de pobre estrito cumpridor de horário
é, na essência, barba e pêlo indomado,
é mais do que eu, todo ele é muito e vário.

meu corpo casado com a virgindade,
na essência experimentou, porém, já todas
as mulheres, na funda intimidade
das mais secretas e felizes fodas.

sento-me à secretária de homem só,
eu, cuja essência é não ter secretária
nem coisas fixas e dadas ao pó;

sento-me o corpo (máscara diária)
e escrevo: pobre condenado ao dó
de a própria essência existir contrária

quarta-feira, 13 de maio de 2009

há uma infinita poesia

há uma infinita poesia
na surpreendente beleza de certos erros

sábado, 9 de maio de 2009

a face negra da perfeição

poesia:
insónia, sinfonia
da orquestra nervosa de células vivas e mortais.

poesia:
álcool cafeína
destrambelhamento
desejo de abismo
cio e asma
um lado triste
e o ruído do roer
de vermes que trocaram o corpo do morto herodes
pelo corpo respirante do poeta.

poesia:
os sentidos agoniados
mas nunca agonizantes
os lobos a uivar aos ouvidos
o excesso de medicação
o azar e a fé negativa;

e de todas estas coisas irrompe, por acidente, a perfeição;
raramente; por vezes, só:

mas que vale a própria perfeição
se toda a perfeição é quebrável
e mesmo o absoluto tem patas de bicho

se até os sonhos de juventude do poeta
ganharam tanta celulite?

mas tem de se recomeçar sempre,
entre o grotesco e o sublime:

tem de se recomeçar uma vez mais

terça-feira, 5 de maio de 2009

niilismo

uma saudade em tudo quanto existo,
uma noção de perda em quanto toco.
sentir já ter perdido tudo isto,
tudo me ser tão próximo e tão pouco

mesmo essa carícia em que me detenho
em teu rosto, em teu seio, em tua mão:
ainda eu os tenho, e já não tenho,
ainda eu lhes toco, e já não são.

ETERNO RETORNAR

Não sei trazer Lisboa no meu peito
Feito de outras memórias, outros sonhos
De espaço e de luz de um tempo desfeito,
E sons que me duram, belos, medonhos.

Já não resta, em mim, céu para gaivotas.
Olho o meu coração: nele não vejo
Colinas, mas a luxúria de rotas
Onde se perderia o rio Tejo.

Corre-me um sangue desenraizado.
O meu passado vai passando mais.
E eu, que lhe sinto o cheiro na pele,

Sou agora uma espécie de exilado
Que se desprendeu de um mundo, no cais,
Mas sem nunca chegar a sair dele.