segunda-feira, 27 de abril de 2009

ler

uma pele é o limite da consciência,
como outra pele envolve o corpo:
e nada se pode conhecer para lá do finito
da pele da consciência.

a não ser quando se lê:

porque a leitura
é a mais solitária crítica da solidão,
é a crítica da pele interna,
como o vértice de um vidro
pode ser a crítica da pele do corpo.

a não ser quando se lê,
porque ler é largar-se de si,
inexistir como si
e existir como intensa flutuação
na música silenciosa do sentido

a não ser quando se lê:

porque ler
é praticar em si
a saída de si mesmo

porque ler é praticar
em si mesmo
a viagem nos outros

sábado, 25 de abril de 2009

IRONIA

o menino cristiano ronaldo é um puto desamoroso de si.
não falo, claro, de Cristiano Ronaldo,
o que fez do balê um desporto viril
apreciado por machos histéricos,
mas
de cristiano
ronaldo
da silva
mendes
castro
pontes.

por que haveria de haver um fanático de Cristiano Ronaldo
no momento de escolher o nome do menino
que se tornará este puto embaraçado em desamor,
óculos,
uma teia metálica nos dentes

este puto embaraçado
nas notas boas (que jogam contra ele)

nariz afilado,
cheiro nos pés,
voz subitamente máscula
a irromper por dentro da sua voz infantil

este puto embaraçado
nos risos afiadíssimos das miúdas quando passa

pêlos errados,
uma imagem errada no espelho,
um pai,
uma mãe,
um irmão mais velho

não saber dizer palavrões
não saber andar de bicicleta
não saber nadar

este puto embaraçado
em se chamar cristiano ronaldo
e nem saber jogar à bola?

quinta-feira, 23 de abril de 2009

DA NATUREZA DA SAUDADE

uma incurável memória que se gera e reproduz no peito,
a escassos milímetros do mamilo:
tal é a saudade.

é uma doença infiel, a memória quando é doença.
é uma doença imprecisa, a saudade:
terrível doença para quem quereria,
ao menos,
sofrê-la com toda a exactidão.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

SUBLIMAÇÃO

Este surpreendente braço de água
Que no meu íntimo tem a nascente
É uma via pra fugir de mim: trago-a
Dentro, e nela me escapo e fico ausente.

Este poder de criar transcendência
Não sei se redime ou se é servidão:
Mas toca o pior da existência
E faz dele um modo de perfeição

A minha mão íntima cria Deus
Para me conduzir à beatitude:
A lava que jorra em mim é sagrada.

Esta poesia é um tecer de véus.
Não sei se me liberta, se me ilude:
Vale mais que tudo, e não vale nada.

LUZ

não há luz que não seja boa nem bem-vinda
mesmo a luz que dói Mesmo a que primeiro cega
mesmo a luz terrível da lucidez que ainda
está no seu início Que ainda agora chega

toda a luz tem um sentido à luz de que vale
mesmo aquela que se não escolhe e ao cumprir-se
traz algo de obsessivo Traz um dom de mal
que compra a nossa alma e fá-la consumir-se

mesmo a luz breve que mal iremos sentir
e por que haja de pagar-se na escuridão
eterna É tudo quanto é no seu momento
perfeito Que nunca se pode possuir
Mas nunca alumbramento algum é tido em vão
A luz é para além do arrependimento

terça-feira, 21 de abril de 2009

NÃO-SER

Teu corpo, meu amor, é belo e mata:
Se o afago, todo ele se desata
E parece que sinto que se aloja
Em meu corpo, que te aceita,
despoja
De quanto não és tu e não é teu.

Teu corpo é demasiado belo.
Quero deter-me nele: quero sê-lo.
Porém,
Desfaz-se-me o ser, sem nada mantê-lo:
E
Nem chego a ser tu: nem sei já ser eu.

Mágoa de Lúcifer

o anjo que mais longe ambicionou
e conquistou a própria orfandade
eu sou: e sou tormento no que sou,
eu: a exuberante infelicidade

nada de quanto fiz é quanto quis,
em nada meu sonho é o meu destino:
minha raiva é tristeza e ninguém diz
onde se diz furor e desatino

onde se diz o mal que eu causo e faço
e se diz da rebelião total
de anjo que se liberta e se cai

ninguém diz de mim a lâmina de aço
que me tortura e é o mal do mal:
todo eu ser tão livre: eu ser tão sem pai.

Do Erro como Dever

sempre os erros desimportantes,
em virtude dessa mesma desimportância,
tendem a dissolver-se no tempo.

todavia,
os erros mais graves e mortais,
os erros grandes e graves praticam
a atracção gravitacional própria de um destino.

alguns erros maiores há,
que exigem de nós
uma dedicação obstinada
uma morosa e amorosa responsabilidade.

alguns erros maiores há,
que são
como um contrato sagrado com mefistófeles:
devemos respeitá-los
virtuosa e escrupulosamente:
há que cumpri-los até ao fim.

A La Recherche du Temps Perdu

num sismo em verso, inverso em tudo
a todos os sismos inclusos no conjunto natural
de todos os sismos,

num sismo inverso
que é, digamos, um glorioso e benéfico acidente,
digamos: um desastre criador,

num sismo que não extingue mundos,
antes instiga mundos antes extintos,

opera-se a verdade da concertação, hoje, destes seres
cujo concerto,
na sua verdade, só ao passado pertence:

e tremeluz a luz
reflectida sobre os copos de vinho tinto
e soam gritos e estilhaços de riso.

e ocorre uma levitação colectiva,
como de um grupo de santos embriagados:
e o mundo extinto, que nem na memória existia já,
revém quase, quase
quase
quase...

persiste,
porém,
uma derradeira película,
uma última resistência do tempo:
talvez não reavamos o passado:

mas, em todo o caso, certo é que levitamos em grupo,
como um grupo de santos.