sexta-feira, 12 de março de 2010

À ESPERA DE CONHECER KANT

Chamamos a isto vida: uma árvore que se desapega, despega e desmembra; não falo da minha vida como se tivesse que ver unicamente com o ovo motorizado que partilha, não sei por que injusta figura de estilo, o nome de "automóvel" com os velozes e completos automóveis que me não vêem sequer; nem com a da força do desleixo que o dissolve, ao meu quase-automóvel, sob a forma de humidade e lixo, lâmpadas de faróis que se fundem, baterias impotentes, riscos na carroçaria, paredes ou caixotes que das profundezas da terra contra ele emergem, subitamente, pela frente ou por trás; mas esqueçamos o automóvel; também não falo da minha vida como se tivesse que ver unicamente com a caldeira que interrompe o percurso do gás, numa ofensiva pausa do seu trabalho, qual vulgar funcionário público, no momento exacto em que eu esperava, da água que me chove no duche, a benção de ser quente; nem que tenha que ver só com a tosse que se aloja no corpo todo da minha mãe, afugentando-a desse corpo para fora, como um inquilino selvagem, poderoso, egoísta e persistente, que a expele sabe-se lá para que becos esconsos da eternidade; não só com a inesperada desamizade de amigos, a brutal desfiliação de filhos, o mau gosto, o mau-hálito, o mau-hábito, a idade, a raiva, a dor, os joelhos, as saudades, as traições, as insanidades. Chamamos a isto vida: esta agoniada espera pela saída da vida para fora; chamamos vida à espera do que vem após, um espectáculo sobre o qual ainda não lemos suficientemente: a que horas principia? com que actores? Deus sempre será o protagonista? quem compôs a música? iremos encontrar, na grande secreta ignorada sala, amigos que saíram mais cedo do que nós? que nos é permitido esperar? (Kant irá receber-nos? E o meu pai?). Chamamos a isto vida. A isto.

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