quinta-feira, 15 de abril de 2010

FONAMBULISMO

Dizemos que esta linha quebrada e curta que nos existe
É um numeroso caderno de percepções,
Vislumbres do eu,
E penduramos-lhe, como roupa estendida,
Tudo quanto possa garantir a
Eternidade do eu:
Conchinhas da praia, amores pequenos,
Estudos, diplomas, cursos, discursos,
Livros, zangas, cartas, contas,
Amigos, um cão, um gato, canetas,
O grande amor,
Mulher, marido, móveis, imóveis,
Promessas, ameaças, casacos, filhos,
Chapéus, injúrias, vinganças, amantes, talheres,
passeios ao domingo.

Mas basta quase nada, um quase nada:
Uma pedra, uma perda, um galho, um prego,
Uma voz, uma mudança, água, um fósforo, fogo, ar,
Um dia, a ferrugem, uma manhã, um louco, uma tarde, uma noite,
Um bêbado, um medo, uma dor,
Uma infância falhada,
Uma desvergonha, um desgoverno, uma falha qualquer
E eis a existência nua, exposta, deposta.
Eis que expira o prazo da sua eternidade.

Como poderíamos pensar que
O passado era uma garantia do futuro,
Se é ao futuro que o passado vai comer
E beber?

E como podemos ter pensado que isto de existirmos seria
Um caderno,
Se é o arame ténue quebradamente servindo de ponte
Entre quê? e quê?

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