sexta-feira, 19 de novembro de 2010

LIBERDADE QUÂNTICA

Chamem-lhe estranho mas,
preso ao planeta e aos seus insistentes movimentos,
consigo, em certas noites de silêncio,
sobretudo às três horas da manhã,
ouvir a rotação e a translacção da terra.

Chamem-lhe estranho, porém
não é estranho: é científico.

E mesmo a gravidade se ouve.
Não vejo o seu poder de atracção,
mas oiço o perpétuo rumor
de ela me absorver
o corpo em direcção ao chão.

[O corpo e o espírito, aliás:
a gravidade abotoa-me de mente e corpo ao chão].

[E oiço-a].

Oiço as paredes desta casa sem janelas, oiço
esta sala que não vira para o sol,
oiço os laços, as promessas, os compromissos,
oiço a minha identidade engomada como um casaco engomado.

[Os meus ouvidos não se esquecem, não sossegam:
todas as prisões são fábricas contínuas de som].

Ultrapassado, porém, um certo limiar de pequenez interior,
concebe-se um mundo prévio às forças,
aos movimentos e determinações macroscópicos,
às leis da natureza e da história, aos poderes do poder,
ao número do meu bilhete de identidade
ou à minha identidade:
concebe-se um mundo prévio, atómico e subatómico,
uma fúria nuclear de incertezas,
uma poética poeira de probabilidades.

Subatomicamente, eu seria livre.
Se excluísse o pormenor de que,
subatomicamente,
não comecei sequer a ser eu.

Oiço-me, sendo eu, só a seguir.
Antes não preoiço, como não consigo prever-me.
Só já num mundo macroscópico e estereofónico.

[E não oiço aí nenhuma liberdade qualquer].

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