terça-feira, 21 de dezembro de 2010

cultiva-se a memória

cultiva-se a memória da mesma forma
que um doente de óculos cultiva a sua obsessão predilecta.

quando fui outro,
aquele outro cuja memória herdei,
perdia-me todos os dias num matagal onde serpentes havia.
precipitava-me, qual cascata,
até um rio e pelo rio adentro,
e nadava como se fosse água na água. hoje não sei nadar.

mas, não sabendo nadar, nado ainda assim sob esses dois modos:
no diáfano da fantasia, em que me sou outro,
e na solidez da memória, que me revive um outro outro.

e tais modos cultivo, como um obsessivo de óculos.

cerimoniosos bichos

estas senhoras visitas são bichos agudos e com fome, recém-vindos a um mundo inocente.
sorrio, presto-lhes as boas-vindas.
vejo-os sorrir-me, exclamo
que belos dentes, rapazes, que belos dentes.
cheiram o meu copo, vasculham-me o computador,
usam as minhas cuecas, as minhas toalhas, as minhas gilétes.
exclamo
a casa é vossa, rapazes, que não haja cerimónia.
mas eles são cerimoniosos em suas atitudes, ainda que não
em seus actos.

à noite, não me tranco no quarto com duas voltas da chave.
nem sequer tenho chave, nem arrasto a cómoda contra a porta.
deixo-me ressonar. um dia virão ao quarto: deus queira
que principiem a devorar-me pelos pés e deus queira
que seja outro dia.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Ó MEU DIVINO PECADO

Ó meu divino pecado,
Como te quero bem tanto;
Prazer endemoninhado,
Vício da terra do espanto.

Digo-te! -, e estás por dizer,
No fundo do poema, onde
Quanto mais te dou a ver,
Mais o poema te esconde.

Não és ódio nem amor,
Não tens culpa ou inocência,
Não és mal, nem bem - nem dor,

Sacra desobediência,
Bicho de sol e fulgor,
Ó pura inconveniência...

o deus aprendiz

meus olhos, estes negros olhos físicos,
vêem coisas tais que eu não conhecia
[isto é, não revêem, só, como amnésicos
curados, o que a alma em si já via].

sou o solitário deus encarnado.
minhas veias são as linhas da história.
em meu corpo aguarda o futuro dado.
do mal que me fazem brotará glória.

e, porém, não sei já julgar o mal.
descubro-lhe, nesta humana visão,
algo que me nunca fora real.

sou deus. é-me simples. ser homem não.
nunca sentira a dor por um igual
e aprendo neste corpo a compaixão.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

num ponto algures

tal como o homem que, de pé, só,
subitamente se desencontra
num quarto silencioso-escuro,
porque em nada ao redor vê ou ouve
mais que o tempo
[esse mero egotar-se: o tempo],
e o tempo não tem norte não tem sul
não tem este, oeste, sudeste ou noroeste;
e o homem não sabe já onde está a porta
por onde entrou,
ou a janela,
ou a cama nem a mesa-de-cabeceira,
e qualquer direcção que tome é uma aventura,

também assim agora eu
erro na minha existência:
tudo se me tornou tempo em torno.
só a cadência cardíaca me orienta,
só a tontura de uma intenção alta,
só uma única certeza: a arbitrariedade dos passos
que tomo:

não há rosa-dos-ventos num quarto escuro.