sábado, 30 de outubro de 2010

ASSOMBRAÇÃO II: ENSAIO SOBRE OS SENTIDOS

Este lugar suspende-se no irreal, quando não estás.
Folheio a tua ausência:
nesta habitação que a ti se habituou
mas em que hoje não estás, cada pormenor
é uma secreta hipótese de ti:
a mesa em que teus dedos pousaram,
um quadro que pintaste, a janela
a que a tua figura há-de amanhã regressar.

Às vezes vejo-te aqui. Provo-te a existência
(no sentido, quase, em que se prova a existência de Deus):
provo-a com todos os sentidos do meu corpo todo,
não cinco provas (como existem cinco provas de Deus),
não seis provas de seis sentidos,
mas também o sentido da temperatura, o da excitação, o do prazer.

Todavia, neste lugar que te habita e onde hoje não estás,
o segredo de ainda assim te pressentir tanto é inexplicável.
E, aliás, também o segredo de estar eu próprio aqui, sem ti,
olhando, cheirando, tocando em tudo, sem ti.
Em tudo, tocando-te: sem ti.

Vou-me embora.
Deixo-te minúsculos pressentimentos, invisíveis, de mim.
O desenho do meu peso no sofá onde me sentei,
algumas expressões digitais, um rumor agarrado às paredes,
e livros que folheei.