quarta-feira, 28 de abril de 2010

Miúdo Gordo

O miúdo gordo caminha hirto; o seu caminhar tem qualquer coisa de não-movimento; progride, exasperantemente hirto, como se estático, inestético, como se fosse uma certa coluna pequena e grossa; usa óculos de sol ray ban, o que me pasma, tratando-se de um miúdo gordo; brinca à bola; dá uns toques; os seus movimentos e perícia surpreendem: é quase bom; mas, por mais que benevolentemente esforce os meus olhos, nunca me parece mesmo bom: porque é um miúdo gordo; o seu gesto mais heróico sobre a bola parecer-me-á sempre só assim assim; assim decidem da realidade os meus olhos de todos nós.

sábado, 17 de abril de 2010

NAS PALAVRAS TE PERSIGO

Nas palavras te persigo,
Impaciente predador no encalço de uma semiluz,
Quase já sombra, quase não-luz:
Uma recordação só, o brilho ausente, que a linguagem reacende
No mesmo acto em que a própria linguagem o afasta de mim:

Nas palavras te procuro
E te formulo
E reformulo
Numa fórmula encantada,
Nas palavras te constituo e nunca estás.

Nas palavras te vejo:
Um abrir de lábios
Um soerguer de dedos
Uma carícia,
Desfeitos outra vez uma vez mais
No seu preciso momento.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

desalmados

atravesso, em corrida, o centro da vila, e não há senão a noite e eu,
e saio por uma das artérias, quando os vejo vir, e já me viram,
vultos malditos,
faço, sem abrandar o passo, uma meia volta mal feita,
embatendo, sem querer, em paredes e portões, acordando os cães dos donos,
que me arreganham os seus nervos, saltando contra o gradeamento,
as vozes enlouquecidas mordendo a noite aos bocados,
tento sair por outra artéria, mas descubro nela um mendigo
tossindo e praguejando,
não posso expô-lo,
eu corro, eles não, mas aproximam-se perversamente de mim,
tento uma nova artéria, como se estas artérias fossem tentáculos
ou pontas de estrelas ao redor do centro,
mas vejo um polícia encostado a uma haste de luz,
e também não posso atraí-los ao polícia, que me não salvaria,
circundei já o centro todo da vila, de artéria em artéria, entre portas fechadas,
a última artéria está bloqueada por um enorme carro de obras,
sinto-os cadenciamente próximos, eu correria ainda, mas sem ter para onde,
não posso mais.

estaco; volto para eles o meu peito arfante e mortal: resta-me enfrentá-los,
sem outras armas que não os ossos e o desespero do meu corpo.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

FONAMBULISMO

Dizemos que esta linha quebrada e curta que nos existe
É um numeroso caderno de percepções,
Vislumbres do eu,
E penduramos-lhe, como roupa estendida,
Tudo quanto possa garantir a
Eternidade do eu:
Conchinhas da praia, amores pequenos,
Estudos, diplomas, cursos, discursos,
Livros, zangas, cartas, contas,
Amigos, um cão, um gato, canetas,
O grande amor,
Mulher, marido, móveis, imóveis,
Promessas, ameaças, casacos, filhos,
Chapéus, injúrias, vinganças, amantes, talheres,
passeios ao domingo.

Mas basta quase nada, um quase nada:
Uma pedra, uma perda, um galho, um prego,
Uma voz, uma mudança, água, um fósforo, fogo, ar,
Um dia, a ferrugem, uma manhã, um louco, uma tarde, uma noite,
Um bêbado, um medo, uma dor,
Uma infância falhada,
Uma desvergonha, um desgoverno, uma falha qualquer
E eis a existência nua, exposta, deposta.
Eis que expira o prazo da sua eternidade.

Como poderíamos pensar que
O passado era uma garantia do futuro,
Se é ao futuro que o passado vai comer
E beber?

E como podemos ter pensado que isto de existirmos seria
Um caderno,
Se é o arame ténue quebradamente servindo de ponte
Entre quê? e quê?

terça-feira, 6 de abril de 2010

NUNCA SER DAQUI

Regresso à errância, meu único país, que
Só por erro
Cri ter trocado por outra raiz:
Minha raiz é essa.

Pertenço à errância:
Sou de não ser de parte nenhuma,
Minha origem é não ser de nada,
E aí retorno, por fim:
Minha terra, minha pátria, minha raiz é o
Esquecimento caminhante de tudo
Aquilo que julguei inesquecível.

Nada é inesquecível.

Torno a arrumar as malas que já não tenho.
(As malas: essa derradeira ilusão
De fixidez e pertença,
Invólucro de
Peúgas, cuecas e memórias que se liquefazem).

Não sou ainda daqui.
A isso pertenço:
Seja onde for,
Nunca ser ainda daqui.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

o momento em que.

minha alma urge:
há-de haver um momento em que.
há-de haver um momento em que, há-de haver um momento em que.

há-de haver um momento em que,
ou talvez nunca.