terça-feira, 29 de dezembro de 2009

GÉNESIS

I
Continuamente contraria em si a solidez daquilo que é,
Forjando a solidão de ser um si que mereça ser-se.

Violento a natureza estanque do que sou, do que me é, de isto:
Este quotidiano de gestos, como uma pele feita de seu vagaroso passado;
Estas palavras-toca, adiposidades que se ventosam às coisas, mais do que as nomeiam;
As costumadas sinapses, rumos em que o hábito se torna hábito,
E eu me torno de mim próprio hábito,
Como um rio em que a água se fixasse para sempre.

Senta-se face a face com deus, ou, se não, perante um espelho.

Chama. Borboletas que invocam tempestades,
Senhoras com rugas e coroas de pérolas,
Que hoje depositam as nádegas em cadeiras que as suportem,
Diante de um computador portátil,
Vislumbrando, como outrora, destinos nos interstícios irracionais dos astros,
Professores de óculos,
Encabidando casacos verdes, de bombazina e cotoveleiras,
Certos lémures frágeis, trepando franzinamente por entre circunvalações nodosas.

Chama-os, mas ninguém o chama.

Nada, nada, nada me revoluciona o mundo nunca:
Nada disto o eleva.

Uma boneca fita-me,
Com seus olhos similarmente humanos em que, por um instante,
Suspeito um instante de astúcia.

Eis o espelho. Eis deus.
Clamando só por que o barbeiem.

Não há mais que isto.

II

Pelo menos, o de crânio despovoado, só pele e osso, não sou eu,
Bebendo café, como eu, numa pizzaria infecta,
Com gestos parentes daqueles que eu próprio efectuo
Como um malabarista com o pacote de açúcar entre os dedos
E sobre a xícara obscura,
Porém, ele não sou eu, porque o observo
(Ou fantasio),
E ele não, ou se é ele que me fantasia,
Fá-lo sem sequer extrair os olhos da xícara
E do rio branco de grãos que escorre do alto para o seu café.

Levanta-se da mesa:
É magro, e nas suas calças, gordas e sem cinto,
Enfia pontas soltas de uma camisa de flanela.

Não há mais que isto, não há.

III

Que Alguém foi que receitou a minha pobre mãe que comprasse um hamster?
E o hamster sobe uma escada que roda sobre si,
eternamente giragiragiragirando,
Com o mesmo efeito que um vizinho flácido que se transforma em atleta
sobre um tapete rolante:
Nunca ninguém progride, essa é que é essa, se é certa a redondez do mundo.

Estava eu embriagado quando criei este mundo?
Não seria melhor que o caos permanecesse,
Em vez de um fiat lux de que saíram
Hamsters, lémures, velhas enrugadas e empéroladas,
Professores medíocres nos seus casacos de bombazina verde,
Borboletas propagando tempestades
E uma boneca a um instante de ganhar vida e me sorrir,
Mas que talvez me não sorrisse, ainda que a vida a ganhasse...?

Estava eu embriagado? De álcool? De café ou de que fé?
Ou bêbedo de que absoluta falta de fé?

Deus-espelho sacode os ombros.
Não há terror: se ao menos houvesse terror.

Clama, ao menos, por que o barbeie.

IV

E nada senão isto.