sábado, 27 de junho de 2009

suspenso à porta da noite

sem nem respirar, de espanto, estaco à porta da noite.
como em puto, temo entrar nela: mas ela é que me entra
e, devagar maligna, dilui todos os contornos.

temo tanto que a noite me seja o destino, como
a água é o puríssimo destino de quem se afoga.

temo que ela seja a casa vazia e ninguém perto.
temo que seja o desfazer-se da minha unidade.

terça-feira, 23 de junho de 2009

o inferno subtil

«[...] e portanto, a existência do fado torna-se uma prova indiscutível da existência do Inferno, que é sempre um inferno pessoal.»
Gil Duarte, De que o Céu Pode Não Existir, Mas o Inferno Existe




bem-vindos vós todos, bem-vindos, pecadores,
ao lugar onde ninguém é senhor nem servo.
não tropeceis. não inventeis pequenas dores.
persista só o mal que aqui vos eu reservo.

cuidado, não vos distraiais, não tropeceis.
é que há uns degraus. embora não haja lume
nem lei: a única lei é não haver leis
que não sejam as leis da culpa e do ciúme.

não espereis um mal que não sofrêsseis outrora
ou um que não tivésseis feito já sofrer.
o mal nunca é novo. mas, aqui, demora:
aqui não tem cura nem se pode esquecer.

olhai bem que não tenho chifres ou tridente
nem tenho cauda nem enxofre nem negrume;
e a isto tudo se resume: eternamente
a tortura eterna da culpa e do ciúme.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

CULPOGRAFIA

quem é o velho que vagueia
por corredores infinitos
da memória, dorida veia
onde vivem mortos e gritos?

quem será pois este que assombra
os labirintos da tristeza:
este espírito ou esta sombra,
a culpa em cinza; e sempre acesa?

quem é este que se demora
onde o não podemos achar,
dor que na cave de nós mora
e ninguém sabe exorcizar?

a figura esguia de um grito,
quem será?
o mal que se tornou um rito,
de onde vem?
esta culpa feroz e má
revolve em nome de quem?

nós somos culpados de já
não ter mais lágrimas em flor
nem te orar por alma. mas se há,
acaso, medida da dor,

a nossa dor ultrapassou-a,
voz do tamanho do vazio,
passado que rasteja, à toa,
para baixo do chão sombrio
onde o teu corpo se esboroa
sob esse musgo velho e frio.

é verdade: já não oramos.
já quase nem saudades temos.

é verdade: já não choramos.

é aceitável: já morremos.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

revelação proibida

ante a possibilidade de uma tal revelação,
uivarão, assustados, esses cães, fugirão os ratos,
as beatas, na igreja, santos nomes maldirão,
formar-se-ão bichas de carros em desertos e matos.

ante a possibilidade de uma revelação tal,
que eu não quero fazer, mas quem sabe se me não descaia,
nuvens pretas concentrar-se-ão sobre mim, sobre o mal
de uma simples palavra nos meus lábios que tudo traia.

por isso não posso dizer, não direi o quanto te amo,
não vão as órbitas de astros pôr-se a desvairar sem fim,
não vão as vagas do mar voar até ao infinito.

e é por isso que nem à noite, a dormir, teu nome chamo:
é um segredo pesado de mais, não só para mim,
mas para o mundo, que não suportaria um tal grito.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

ritual da mágoa

após ter passado a mágoa, aquilo que fica
é o esquema da mágoa, é o seu monograma.

sofre-se histérica e estereofonicamente,
não esmoreça em nós a dor que já nos não dói.

composição das coisas

no que muda há isto mesmo, que muda tudo
e que, portanto, é tudo tão irrelevante
como esta voz que nos ilude e que, contudo,
nada mais é do que sopro, do que ar vibrante,

como a eterna unidade entre as nossas almas,
que traz um secreto prazo de validade
inscrito em si, ou como estas tardes tão calmas
que o tempo amargo em muito pouco tempo há-de

desfazer,
a verdade certa é que não há
verdade alguma, ou alguma eternidade
ou seja o que for que se não esgote inteiro:

veloz ou vagarosa, a mudança se dá
na luz, na carne, na paixão ou na amizade,
na pedra, na língua ou no braço mais certeiro.

EM VEZ DE MIM

Tu,
Quem mais me compreende
E a que me compreende menos,
Que me pertences
Até onde eu posso pertenceres-me
E em nada me pertences nada,

Tu,
Realidade efectiva, inteira, plena
De que eu sou um reflexo carente,

Tu,
Que existes, afinal, sem mim que quero
Que existas em mim, que, sem ti,
Não existo,

Em cada momento te vais um pouco mais
Para longe da minha solidão

Em cada momento és, cada vez mais,
Distância, ausência, o som da água,
O ecoar da mágoa no vazio magoado,
A noite em que te vou perdendo
Mais e mais ainda.

E na solidão sem nome sem nada
Só um ciúme desapossado
Arde já


Em vez de mim


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sexta-feira, 5 de junho de 2009

perdas e ganhos

não há pessoas felizes.
e nem sequer todas as pessoas felizes que há
são, de facto, pessoas felizes.

em tudo o que se ganha há infinitas perdas,
não inteiramente contabilizadas.
mas seria melhor nunca se ganhar
por causa e por medo
do que se perde intimamente ao que se ganha?

aliás,
há algo muito parecido com felicidade em certas perdas.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

à transparência

à transparência doirada desta luz matinal,
irrompem no nosso mundo, como ruídos sem fé,
dedadas nos copos, caspa incrustada nas lentes dos óculos,
átomos de poeira suspensos no ar da luz
e reptilianas manchas nas paredes da alma.

à clareza enganadoramente clara da manhã,
revela-se a memória das coincidências imundas
e os melancólicos vestígios da noite passada:
uma pilha suja de pratos, palitos, caroços
e fantasmas que não chegaram a ir embora.